Adelto Gonçalves
Em Março, Barcelona surpreendeu-se com o lançamento do romance La ciudad sin tiempo, de Enrique Moriel. Em poucos meses, o livro vendeu cerca de 60 mil exemplares. E quem era Enrique Moriel? Na sobrecapa do livro, a editora informava que Moriel havia nascido no século passado em Barcelona e era autor de reconhecida trajetória, que havia cultivado os mais diversos géneros literários. E que, a exemplo do protagonista de La ciudad sin tiempo, havia preferido ocultar sua verdadeira identidade, mas que, à diferença daquele, não pretendia fazê-lo indefinidamente. Logo, os meios culturais da cidade descobriram que se tratava de um veterano escritor disfarçado atrás de um pseudónimo. Francisco González Ledesma (1927) era esse escritor, um jornalista que começara a escrever romances de Far West para Editorial Bruguera com o pseudónimo Silver Kane ainda na década de 40, para custear seus estudos de Direito. E que havia construído uma respeitável carreira literária ligada ao gênero policial, ou melhor, ao "romance negro", à boa maneira norte-americana, dividindo a preferência entre os amantes do género com Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003) e Eduardo Mendoza (1943).
A exemplo de Montalbán com seu detective privado Pepe Carvalho e Mendoza com o seu detective-louco, Ledesma criou o comissário Ricardo Méndez, protagonista de seis de seus romances negros, policial capaz de usar apenas o tirocínio para desvendar crimes aparentemente insolúveis ou grandes falcatruas no mundo das altas finanças. Acostumado a escrever de um jacto desde jovem, quando para cumprir um exíguo prazo de uma semana ou pouco mais ajudava a editora a aproveitar a sofreguidão com que os leitores espanhóis do final da década de 40 acorriam às bancas de revistas e livrarias em busca daqueles livrinhos de bolso, Ledesma nem por isso sacrificou a qualidade literária. Tanto que, aos 21 anos de idade, ganhou o Premio Internacional de Novela com Sombras viejas. Formado em Direito, dedicou-se primeiro à advocacia, mas, depois, optou mesmo pelo jornalismo, dando vazão à sua vocação. Trabalhou em jornais como o Correo Catalán e, em seguida, no tradicional diário La Vanguardia, onde ficou por 25 anos e chegou a redactor-chefe. Ambas as profissões acabaram por lhe proporcionar um conhecimento profundo de Barcelona, de seus segredos, suas personagens, suas ruas, edifícios, seus políticos e seu mundo empresarial.
Em 1977, publicou Los napoleones, romance que fora proibido pela censura do regime do general Francisco Franco Bahamonde (1892-1975). E, à época de transição do franquismo para a democracia, quando a Espanha não deixou de flertar com o retrocesso político, ganhou em 1984 o Prémio Planeta com Crónica sentimental en rojo, em que Méndez aparece como protagonista.Tendo o comissário ainda como personagem principal, escreveu mais cinco romances: Expediente Barcelona (1983), Las calles de nuestros padres (1984), La dama de Cachemira (1986), Historia de Dios en una esquina (1991) e El pecado o algo parecido (2002), além de Historia de mis calles (2006). Expediente Barcelona foi traduzido para o francês e publicado pela famosa Editora Gallimard, de Paris, conquistando um êxito na França considerado mais estrondoso do que aquele que registrara na Espanha. Com um currículo desses, obviamente, Ledesma não tinha por que se esconder atrás de um pseudónimo. Mas, por alguma razão, deixou que o editor inventasse Enrique Moriel como autor de La ciudad sin tiempo, talvez por uma questão de marketing - o que, de certo modo, foi uma opção vitoriosa porque ajudou a chamar mais atenção para o livro - ou por que não queria que sua nova obra fosse confundida com o género policial. Até porque La ciudad sin tiempo, embora tenha traços de "romance negro" e trate de uma investigação que começa a partir da misteriosa morte de Guillermo Clavé, destacado prócer da sociedade barcelonesa actual, vai muito além dos limites em que, habitualmente, os críticos enquadram o género.
Seja o que for, a verdade é que Ledesma aprovou o pseudónimo, artifício a que, a rigor, já estava bastante acostumado, diga-se de passagem. O seu novo romance também remete o leitor para essa época, pois diz que concebeu a sua trama há mais de trinta anos, quando escrevia novelas de aventuras proibidas pela censura. De facto, o romance trai um pouco o gosto desse tempo, quando o realismo mágico começou a se formar como género literário, alcançando o ápice em 1967 com o lançamento de Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez (1928). Afinal, em La ciudad sin tiempo, o que o leitor vai encontrar é a história de um vampiro que, como tal, não morre nunca e, por isso, conhece a fundo os mistérios que cercam Barcelona desde os tempos medievais, suas personagens duvidosas, os segredos de seu submundo, os cafés, os prostíbulos, os políticos e até os verdugos. Em resumo, conta a história de Marta Vives, jovem ajudante do advogado Marcos Solana, que, habituado a defender os interesses das famílias mais ricas da cidade, trabalha no esclarecimento da morte de Clavé.
Durante a investigação, Marta não apenas lida com forças ocultas e que têm muito a ver com o sinistro, como acaba por se envolver numa luta de séculos que a sua família mantém com outra estirpe muito antiga da cidade, os Masdéu. Ao seu encontro, para ajudá-la a desvendar o crime, irá o vampiro, na verdade, um inquietante narrador surgido da Barcelona medieval, perseguido pela Inquisição, cujo rosto sempre aparece em momentos decisivos da história da cidade. Com esse artifício literário, portanto, Moriel (ou Ledesma) consegue reescrever, praticamente, toda a história de Barcelona. Marta e este espírito maldito vão seguir, em capítulos intercalados e marcados por uma mudança de fonte na letra que facilita a vida do leitor, por uma fascinante busca, em meio a luzes e sombras, em que se discute uma questão que atormenta a Humanidade há séculos: que provas há de que no combate entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo, ganhou o primeiro? Afinal, basta abrir as páginas do jornal desta manhã para se encontrar provas abundantes que indicam exactamente o contrário daquilo que as religiões pregam por séculos.Nascido num prostíbulo, filho de uma prostituta, o vampiro segue uma trajectória clássica na literatura espanhola, que remonta à segunda metade do século XVI e a primeira do XVII, a época de Lazarillo de Tormes, Guzmán de Alfarache e de El Buscón. Não por acaso, como Lázaro, o vampiro também vira ajudante de um sacerdote que perdeu a fé e exerce muitos outros ofícios, inclusive, o de ajudante de verdugo à época da Inquisição. Mas transmuta-se em várias personagens ao longo dos anos por uma questão muito simples: um vampiro nunca envelhece, mantêm sempre a mesma cara, como descobre, intrigado, o advogado Solana, que se espanta com um rosto que se mostra invariavelmente o mesmo, em épocas distintas, ainda que assumindo outras personalidades. Escrito em linguagem vibrante, que, praticamente, impede o leitor de saltar páginas em busca do desenlace da trama, La ciudad sin tiempo é também um hino de amor e ódio a Barcelona, pois resgata várias das personagens que construíram a cidade, inclusive, o arquitecto Antoni Gaudí (1852-1926), construtor da ainda inacabada igreja da Sagrada Família - hoje ameaçada na sua estrutura por obras de um túnel subterrâneo para o comboio de alta velocidade –, que aparece como fornecedor do rico antiquário Masdéu. Para o vampiro, Gaudí diz algumas frases antológicas, que merecem registro, ainda que em tradução: "Já não tenho amores - disse-me -, perdi os amigos e nem tenho nem poderei ter filhos. Mas desaparecerei e tudo isso não significará nada. Imagino, em compensação, o que deve ser a eternidade, vendo morrer tudo o que se amou: as sucessivas mulheres, os sucessivos filhos, os artistas que admirei e deram sentido a minha vida, as casas que guardam as minhas recordações... Ver tudo isso convertido em cinza. Essa é a sua desgraça, amigo. (...) Creia-me, a morte é piedosa porque não deixa ver os horrores da vida, nem os horrores de nossa própria obra. A imortalidade é o pior castigo que se nos podem impor, e me compadeço de Deus porque também a sofre". "(...) Não sei se Deus está satisfeito com sua própria obra. Crê que a deu por terminada alguma vez?" Por aqui se vê que esta é obra que merece ser traduzida para o português o mais rápido possível. Afinal, se estiver certa a previsão de José Saramago (1922) de que, em breve, iremos todos os luso-falantes viver num país chamado Grande Ibéria, a nossa Meca literária será, então, Barcelona.
(La Ciudad Sin Tiempo, de Enriquel Moriel. Barcelona: Ediciones Destino, 2007, 459 págs., 20 euros. www.edestino.es)
Literatura sem fronteira, 21 setembro 2007
Em Março, Barcelona surpreendeu-se com o lançamento do romance La ciudad sin tiempo, de Enrique Moriel. Em poucos meses, o livro vendeu cerca de 60 mil exemplares. E quem era Enrique Moriel? Na sobrecapa do livro, a editora informava que Moriel havia nascido no século passado em Barcelona e era autor de reconhecida trajetória, que havia cultivado os mais diversos géneros literários. E que, a exemplo do protagonista de La ciudad sin tiempo, havia preferido ocultar sua verdadeira identidade, mas que, à diferença daquele, não pretendia fazê-lo indefinidamente. Logo, os meios culturais da cidade descobriram que se tratava de um veterano escritor disfarçado atrás de um pseudónimo. Francisco González Ledesma (1927) era esse escritor, um jornalista que começara a escrever romances de Far West para Editorial Bruguera com o pseudónimo Silver Kane ainda na década de 40, para custear seus estudos de Direito. E que havia construído uma respeitável carreira literária ligada ao gênero policial, ou melhor, ao "romance negro", à boa maneira norte-americana, dividindo a preferência entre os amantes do género com Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003) e Eduardo Mendoza (1943).
A exemplo de Montalbán com seu detective privado Pepe Carvalho e Mendoza com o seu detective-louco, Ledesma criou o comissário Ricardo Méndez, protagonista de seis de seus romances negros, policial capaz de usar apenas o tirocínio para desvendar crimes aparentemente insolúveis ou grandes falcatruas no mundo das altas finanças. Acostumado a escrever de um jacto desde jovem, quando para cumprir um exíguo prazo de uma semana ou pouco mais ajudava a editora a aproveitar a sofreguidão com que os leitores espanhóis do final da década de 40 acorriam às bancas de revistas e livrarias em busca daqueles livrinhos de bolso, Ledesma nem por isso sacrificou a qualidade literária. Tanto que, aos 21 anos de idade, ganhou o Premio Internacional de Novela com Sombras viejas. Formado em Direito, dedicou-se primeiro à advocacia, mas, depois, optou mesmo pelo jornalismo, dando vazão à sua vocação. Trabalhou em jornais como o Correo Catalán e, em seguida, no tradicional diário La Vanguardia, onde ficou por 25 anos e chegou a redactor-chefe. Ambas as profissões acabaram por lhe proporcionar um conhecimento profundo de Barcelona, de seus segredos, suas personagens, suas ruas, edifícios, seus políticos e seu mundo empresarial.
Em 1977, publicou Los napoleones, romance que fora proibido pela censura do regime do general Francisco Franco Bahamonde (1892-1975). E, à época de transição do franquismo para a democracia, quando a Espanha não deixou de flertar com o retrocesso político, ganhou em 1984 o Prémio Planeta com Crónica sentimental en rojo, em que Méndez aparece como protagonista.Tendo o comissário ainda como personagem principal, escreveu mais cinco romances: Expediente Barcelona (1983), Las calles de nuestros padres (1984), La dama de Cachemira (1986), Historia de Dios en una esquina (1991) e El pecado o algo parecido (2002), além de Historia de mis calles (2006). Expediente Barcelona foi traduzido para o francês e publicado pela famosa Editora Gallimard, de Paris, conquistando um êxito na França considerado mais estrondoso do que aquele que registrara na Espanha. Com um currículo desses, obviamente, Ledesma não tinha por que se esconder atrás de um pseudónimo. Mas, por alguma razão, deixou que o editor inventasse Enrique Moriel como autor de La ciudad sin tiempo, talvez por uma questão de marketing - o que, de certo modo, foi uma opção vitoriosa porque ajudou a chamar mais atenção para o livro - ou por que não queria que sua nova obra fosse confundida com o género policial. Até porque La ciudad sin tiempo, embora tenha traços de "romance negro" e trate de uma investigação que começa a partir da misteriosa morte de Guillermo Clavé, destacado prócer da sociedade barcelonesa actual, vai muito além dos limites em que, habitualmente, os críticos enquadram o género.
Seja o que for, a verdade é que Ledesma aprovou o pseudónimo, artifício a que, a rigor, já estava bastante acostumado, diga-se de passagem. O seu novo romance também remete o leitor para essa época, pois diz que concebeu a sua trama há mais de trinta anos, quando escrevia novelas de aventuras proibidas pela censura. De facto, o romance trai um pouco o gosto desse tempo, quando o realismo mágico começou a se formar como género literário, alcançando o ápice em 1967 com o lançamento de Cem anos de solidão, do colombiano Gabriel García Márquez (1928). Afinal, em La ciudad sin tiempo, o que o leitor vai encontrar é a história de um vampiro que, como tal, não morre nunca e, por isso, conhece a fundo os mistérios que cercam Barcelona desde os tempos medievais, suas personagens duvidosas, os segredos de seu submundo, os cafés, os prostíbulos, os políticos e até os verdugos. Em resumo, conta a história de Marta Vives, jovem ajudante do advogado Marcos Solana, que, habituado a defender os interesses das famílias mais ricas da cidade, trabalha no esclarecimento da morte de Clavé.
Durante a investigação, Marta não apenas lida com forças ocultas e que têm muito a ver com o sinistro, como acaba por se envolver numa luta de séculos que a sua família mantém com outra estirpe muito antiga da cidade, os Masdéu. Ao seu encontro, para ajudá-la a desvendar o crime, irá o vampiro, na verdade, um inquietante narrador surgido da Barcelona medieval, perseguido pela Inquisição, cujo rosto sempre aparece em momentos decisivos da história da cidade. Com esse artifício literário, portanto, Moriel (ou Ledesma) consegue reescrever, praticamente, toda a história de Barcelona. Marta e este espírito maldito vão seguir, em capítulos intercalados e marcados por uma mudança de fonte na letra que facilita a vida do leitor, por uma fascinante busca, em meio a luzes e sombras, em que se discute uma questão que atormenta a Humanidade há séculos: que provas há de que no combate entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo, ganhou o primeiro? Afinal, basta abrir as páginas do jornal desta manhã para se encontrar provas abundantes que indicam exactamente o contrário daquilo que as religiões pregam por séculos.Nascido num prostíbulo, filho de uma prostituta, o vampiro segue uma trajectória clássica na literatura espanhola, que remonta à segunda metade do século XVI e a primeira do XVII, a época de Lazarillo de Tormes, Guzmán de Alfarache e de El Buscón. Não por acaso, como Lázaro, o vampiro também vira ajudante de um sacerdote que perdeu a fé e exerce muitos outros ofícios, inclusive, o de ajudante de verdugo à época da Inquisição. Mas transmuta-se em várias personagens ao longo dos anos por uma questão muito simples: um vampiro nunca envelhece, mantêm sempre a mesma cara, como descobre, intrigado, o advogado Solana, que se espanta com um rosto que se mostra invariavelmente o mesmo, em épocas distintas, ainda que assumindo outras personalidades. Escrito em linguagem vibrante, que, praticamente, impede o leitor de saltar páginas em busca do desenlace da trama, La ciudad sin tiempo é também um hino de amor e ódio a Barcelona, pois resgata várias das personagens que construíram a cidade, inclusive, o arquitecto Antoni Gaudí (1852-1926), construtor da ainda inacabada igreja da Sagrada Família - hoje ameaçada na sua estrutura por obras de um túnel subterrâneo para o comboio de alta velocidade –, que aparece como fornecedor do rico antiquário Masdéu. Para o vampiro, Gaudí diz algumas frases antológicas, que merecem registro, ainda que em tradução: "Já não tenho amores - disse-me -, perdi os amigos e nem tenho nem poderei ter filhos. Mas desaparecerei e tudo isso não significará nada. Imagino, em compensação, o que deve ser a eternidade, vendo morrer tudo o que se amou: as sucessivas mulheres, os sucessivos filhos, os artistas que admirei e deram sentido a minha vida, as casas que guardam as minhas recordações... Ver tudo isso convertido em cinza. Essa é a sua desgraça, amigo. (...) Creia-me, a morte é piedosa porque não deixa ver os horrores da vida, nem os horrores de nossa própria obra. A imortalidade é o pior castigo que se nos podem impor, e me compadeço de Deus porque também a sofre". "(...) Não sei se Deus está satisfeito com sua própria obra. Crê que a deu por terminada alguma vez?" Por aqui se vê que esta é obra que merece ser traduzida para o português o mais rápido possível. Afinal, se estiver certa a previsão de José Saramago (1922) de que, em breve, iremos todos os luso-falantes viver num país chamado Grande Ibéria, a nossa Meca literária será, então, Barcelona.
(La Ciudad Sin Tiempo, de Enriquel Moriel. Barcelona: Ediciones Destino, 2007, 459 págs., 20 euros. www.edestino.es)
Literatura sem fronteira, 21 setembro 2007
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